APTIDÃO

21/03/2012 19:46

Segue aí uma crônica do ilustre "Luís Fernando Veríssimo", qual retrata o valor que um funcionário tem para a empresa dentro do sistema capitalista.

 

 

Abre a porta. Entra o Senhor Pacheco.

- Bom dia, Senhor Pacheco. Sente-se, por favor. Temos uma ótima notícia para o senhor.

- Sim senhor.

- Como o senhor deve saber, Senhor Pacheco, contratamos uma firma de psicomputadores, para fazer testes de aptidão nos dez mil empregados desta firma. Precisamos nos atualizar. Acompanhar os tempos.

- Sim, senhor.

- Os dez mil testes foram submetidos a um computador, há dois minutos, e os resultados estão aqui. O senhor é o primeiro a ser chamado porque o computador nos forneceu os resultados em rigorosa ordem alfabética.

- Mas o meu nome começa com "P".

- Hum, sim, deixa ver. Pacheco. Sim, sim. Deve ser por ordem alfabética do primeiro nome, então. Este computador é de quarta geração. Nunca erra. Como é o seu primeiro nome?

- Xisto.

- Bom, isso não tem importância. Vamos adiante. Vejo aqui pela sua ficha que o senhor está conosco há vinte e oito anos, Seu Pacheco. Sempre na seção de entorte de fresos. O senhor nunca faltou ao serviço, nunca tirou férias, e já recebeu nosso prêmio de produção, o Alfinete de Alumínio, dezessete vezes.

- Sim, senhor.

- O senhor começou na seção de entorte de fresos como faxineiro, depois passou a assistente de entortador, depois entortador, e hoje é o chefe de entorte.

- Sim, senhor.

- Me diga uma coisa, Senhor Acheco...

- Pacheco.

- Senhor Pacheco. O senhor nunca se sentiu atraído para outra função, além do entorte de fresos? Nunca achou que entortar não era bem sua vocação?

- Nunca, não senhor.

- Pois veja só, Senhor Pacheco. O computador nos revela que a sua verdadeira vocação não é o entorte de fresos e sim o bistoque de tronas!

- Sim, senhor.

O senhor é um bistocador de tronas nato, segundo o computador. Não é fantástico? E ainda tem gente que critica a tecnologia. O senhor era um homem deslocado no entorte de fresos e não sabia. Se não fosse o teste, nunca ficaria sabendo. Claro que essa situação vai ser corrigida. O senhor a partir deste minuto, deixa de entortar.

- Sim, senhor.

- Quanto o senhor ganha conosco, Senhor Pacheco, depois de vinte e oito anos? Mil, mil e duzentos?

- Quinhentos, não contando os alfinetes.

- Pois, sim. E sabe quanto ganha um iniciante no bistoque de tronas? Mil e quinhentos! Não é fantástico?

- Sim, senhor.

- Só tem uma coisa, Senhor Pacheco. Nossa firma não trabalha com tronas. Pensando bem, ninguém trabalha com tronas hoje em dia.

- Olha, tanto faz. Não é mesmo? Eu estou perfeitamente satisfeito no entorte, falta só vinte anos pra me aposentar e ...

- Senhor Pacheco, então a firma gasta um dinheirão para descobrir a sua verdadeira vocação e o senhor quer jogá-la fora? Reconheço que o senhor tem sido um chefe de entorte perfeito. Aliás, o computador não descobriu ninguém com aptidão para o entorte. Vai ser um problema substituí-lo. Mas não podemos contestar a tecnologia. O senhor está despedido. Por favor, mande entrar o seguinte, por ordem alfabética, o Senhor Roque Lins. Passe bem.

- Sim, senhor.

Sai o Senhor Pacheco. Fecha a porta.